O trabalho de Gabriel Torggler, na Temporada de Projetos 2019/2021, do Paço das Artes, resulta de um longo e dinâmico processo de criação, o qual pode ser entendido por diferentes vieses. O mais óbvio é que a sua figuratividade não se encaixa na clássica imagem da arte. O desenho é a ordem maior do seu fazer e a linguagem visual deriva de um estilo muito pessoal que, ao longo dos anos, se mantém coerente com uma pesquisa de procedimentos sobre formas, cores, texturas e materiais (nanquim, aquarela, grafite, guache, esferográfica, lápis de cor, crayon). A fim de expandir seus limites artísticos, ultimamente o artista tem desenvolvido sua pesquisa incorporando novos materiais (Cimento, cobre, latão) e, também abrindo espaço no campo do tridimensional.
Apesar da aparência disparatada que se aproxima da ilustração, dos quadrinhos ou mesmo de um desenho naife, tal percepção pode erroneamente levar o observador a uma concepção simplista e, muito ao contrário, no trabalho a estrutura e a narrativa são intrincadas e complexas, quase enigmáticas.
Outro engano fácil de cometer é pensar que, por ter uma construção visual altamente saturada, e as obras se assemelham a unidade de um all over, o trabalho se dá a ver facilmente ou se entrega de uma só vez. Tanto em Senso de humor alterado como em 31 elos do que percebo, a linearidade das faixas é intercalada por um intenso e caótico mundo de figuras. Toda a superfície do papel é trabalhada de maneira obsessiva por acúmulos de pequenos traços que não só “fecham” quase totalmente o fundo do papel como também servem como passagens/conexões entre as figuras-personagens. Uma constelação de objetos díspares, como num certo conto de Borges, convivem sem causar aparente estranhamento. As associações entre as figuras são livres, sem um encadeamento segundo um agrupamento por semelhança o que homogeneiza a composição. Aqui elas existem em universos paralelos, em redes não-lineares e rizomáticas, sem que isso altere a harmonia da narrativa. A imagem não é trabalhada na tradicional sequência narrativa de princípio, meio e fim, mas metaficcionalmente. Uma complexa rede labiríntica de inter-relações de unidades que dão voltas sobre si mesmas, convergindo e divergindo borrando as fronteiras dos pequenos acontecimentos e histórias. As figuras constroem um diálogo de ir e vir, de faltas e desencontros, ou de um eterno e infinito retorno, estabelecendo, deste modo, um jogo intelectual de linguagem. É todo esse constructo que dá à obra seu aspecto unificado e indivisível. Palavras são inseridas no campo pictórico, sem, no entanto, estabelecerem relações de traduções com as imagens-objetos. Palavras sugestões, palavras desviantes, palavras-imagens. Por outro lado, Fragmentos funciona como um arquivo, no qual o artista tenta isolar, num desejo didático, algumas dessas imagens-objetos, que aparecem nas duas obras citadas acima, uma espécie de catalogação: cobra, minhoca e lagarto convivem com relógios, frutas, vasos, dentes, pé e pata - uma verdadeira arqueologia do heteróclito
Em raros encontros, nestes tempos pandêmicos, e em nossas conversas on-line o assunto girava em torno deste fazer que quase como uma alquimia cria uma atmosfera incomum de fantasia. A qualidade anticlássica que foge do naturalismo, do convencionalismo e do racionalismo encontra numa espécie de divagação a inovação imagética. Apesar de existir um plano, um projeto, uma concepção inicial, a imagem acontece nesse fazer em ato, ou seja, o desenho vai se construindo e expandindo em padrões ora conhecidos ora incorporando o acaso, a improvisação e o risco como parte integrante da vivência do processo criativo. Por fim há nos trabalhos de Gabriel um outro viés que é uma expressão de leveza. A obra é alegre, vibrante, divertida às vezes até irônica. Caráter construído graças aos procedimentos gráficos: pelas cores fortes e intensas, por uma multiplicidade de seres imaginários – um verdadeiro bestiário, pelas diferentes texturas e hachuras, feitas a bico de pena, que constroem tensões e oposições gerando movimento na imagem.
Num efeito de all over abstrato o olhar pode escorregar rapidamente sobre a superfície. Nas obras de Gabriel Torggler apesar do mesmo efeito se fazer presente devido ao campo ser extremamente coberto de figuras que não possuem hierarquia, nem de tamanho nem de lugar no espaço, e do ritmo acelerado, o trabalho exige um tempo de olhar, um retardo no fluxo da percepção para encontrar links entre as partes figurativas deste todo. Enfim, precisa de uma duração na apreensão estética e no sentido da obra.
Nancy Betts
Agosto 2021