Chamar de “monstra” a pintura de Gabriel Torggler não descreve somente a figuração povoada por diabos, ou um corpo humano empalado por espinhos, que boiam num espaço sem fundo nem fim, como diz o título da exposição. “Monstruoso”, o adjetivo, tampouco se estringe ao caráter disforme dessas imagens, em que não se sabe o que é mineral, vegetal ou animal, o que é o ramo de uma planta ou o rabo de uma besta, uma flor ou o jato de substâncias líquidas. É mesmo difícil precisar, diante dessas telas, se o mergulho visual proposto ao observador é no fundo do mar ou no quinto dos infernos.
Ocorre que a própria pintura, ou sua realização, é anômala. Seus processos de feitura são estranhos à linguagem. E, como se não bastasse isso, os procedimentos de Torggler distorcem a técnica de que lançam de mão. Os trabalhos são feitos com aerógrafo (ferramenta por compressão de ar) e tinta automotiva, na paleta industrial. Mas, ao contrário do que recomendam os padrões, o artista não preenche suas superfícies com cores sólidas e de modo uniforme.
Em vez disso, ele dilui a tinta para deixa-la liquefeita, rala, e a aplica, em geral, com gestos curtos, paralelos uns aos outro, em direções variadas, que conferem ao acabamento um aspecto falho. Alterna entre, de um lado, a estampa de dezenas de figuras de contornos precisos, feitas com estêncil, que se emendam umas às outras, e, de outro, a feitura de manchas irregulares, ou de gestos abruptos com bastão a óleo, numa sobreposição de camadas que gera uma confusão de planos e resulta em imagens de aspecto embaçado.
A despeito disso, dessa aparência de imperfeição, de borrões, as pinturas são dinâmicas. As cores são vibrantes. Os fragmentos que integram o tumulto agitam-se, na maioria das vezes, sem simetria, sem hierarquia, na indefinição dos níveis – afinal, o que está para frente e o que está por trás nessa malha de estampas? Não deixa de ser curioso que os componentes do trabalho sejam todos planos, chapados, e que, pela profusão de sobreposições, deixem-se enroscar numa profundidade rasa. Da mesma maneira, o que seria perspicaz dizer a respeito dessas pinturas: que são densas, carregadas, pela quantidade de acontecimentos que acumulam, ou que são aéreas, aquosas, já que seus elementos se encontram em constante flutuação?
O olho não para. A cabeça também não. Uma coisa leva à outra, e ambas são díspares. As figuras se repetem, ligam-se umas às outras e, assim, configuram outros e outros desenhos mais, sem parar. As reuniões são várias, mas nada se junta para valer. As conexões restam em aberto. No interior do trabalho, dá-se uma articulação imprevista entre a iconografia do juízo final, os gárgulas e a imagética grotesca da idade média, a reorientação fragmentária de seres e objetos do cubismo sintético, o inconsciente e o “baixo materialismo” surrealistas, a experiência lisérgica da psicodelia, a visualidade de acessórios e propagandas de marcas de skate e surfe dos anos 1980 e 1990, o material gráfico de bandas de rock desde a década de 1960, as animações da era MTV, tudo isso revolvido com o ímpeto de erupções.
O mal e o humor, enfim, convivem. Aqui, o diabo gargalha e chora. E, nessa miríade de visões, as formas têm pontas, todas: chifres, espinhos, ouriços, olhos, luas, a pimenta-caju. Daí mede-se a violência e a graça das imagens, que, em vários sentidos, são contundentes. Até a anatomia do golfinho espeta e fere, do bico à cauda, da barbatana às nadadeiras. O trabalho mantém seu gume afiado no horror e na diversão. A fim de fazer, ao que parece, pinturas que sejam a alegria e a tristeza do capeta. Monstras!
2024