Toda máquina celibatária se define como uma interseção de dois conjuntos (antropológico e mecânico).
Michel Carrouges¹
Gabriel Torggler escreveu, em 2017, sobre seu processo de criação: “Opero como uma impressora entintando uma folha de papel em branco”². O mecanicismo com que o artista vem pensando e organizando os procedimentos para compor suas imagens não é isento de tensões. Algumas delas resultam do fato de que a automatização dos gestos cria um terreno propício à aparição do sujeito naquilo que ele possui de mais singular. Liberada do imperativo de decidir, a cada instante, os rumos do trabalho, a consciência recolhe-se, deixando espaço para nascerem formas engendradas sob uma espécie de hipnose – como aquela que experimentamos quando, enquanto falamos ao telefone, desenhamos formas que não sabemos de onde vêm ou a quem se endereçam. Conferir protagonismo a estes resíduos do afrouxamento da consciência empresta à poética de Torggler uma tonalidade surrealista que, atualmente, se desdobra não apenas no plano iconográfico, mas também material e tecnicamente.
As obras que Torggler apresenta ao público em Serviço irregular radicalizam o mecanicismo com que o artista vinha tratando seus desenhos e profanam a pintura enquanto cânone estético. Produzido com tinta automotiva, bastão oleoso e tinta acrílica, este conjunto de obras assimila, no plano pictórico, tanto as marcas do artista-impressora que, com aerógrafo, inscreve uma gestualidade maquínica sobre toda a superfície da imagem quanto a iconografia onírica que nasce da relação de Torggler com o desenho como dispositivo de procrastinação. A pintura é evocada em sua faceta industrial, tensionada pela reintegração do aerógrafo no trabalho artístico, e colocada para conviver com o desenho, despojo de uma relação do artista com o tempo – Torggler sempre está desenhando.
Esta constituição dual do trabalho, formalizada nos pares humano/maquínico e pictórico/gráfico, remonta às máquinas celibatárias, anunciadas por Marcel Duchamp e incontornáveis na crítica estética da modernidade. Nas palavras de Michel Carrouges, a invariante fundamental do mito das máquinas celibatárias é “a distância ou diferença entre a máquina e a solidão humana”. Em La Mariée mise à nue par ses célibataires même, o Grande vidro de Duchamp, esta distância aparece na estruturação da composição em uma área superior, na qual vemos o conjunto antropológico (a Mariée) e em uma área inferior, espaço do conjunto mecânico (celibatários: carrinho, moinho, trituradora). À diferença do Grande Vidro, as relações entre o antropológico e o mecânico, em Torggler, não se estruturam em termos compositivos, mas procedimentais. Aqui, a pintura com aerógrafo e tinta automotiva (mecânico) e o desenho (humano, demasiado humano) convivem na imanência das imagens.
Há, ainda, uma dimensão do projeto de Torggler sugerida pelo título da mostra – Serviço irregular – que merece ser enunciada. Trata-se de uma articulação entre trabalho e tempo, que podemos depreender do gesto do artista de reivindicar para suas pinturas o estatuto de serviço. Utilizando tintas que possuem nomes de modelos de automóveis, aplicadas sobre tela com aerógrafo (instrumento inventado pelo pintor britânico Charles Burdick que atualmente integra o repertório de técnicas industriais de revestimento de superfícies), o artista posiciona-se ao lado do pintor profissional, aquele que dá cor a quase tudo que nos cerca. Mas a pintura aerográfica sobre tela levada a cabo por Torggler não resulta em superfícies homogêneas ou lustrosas, ela engendra uma textura alheia a qualquer determinação formal a priori por parte do artista. Este processo transforma o ateliê em uma espécie de oficina, onde o som do compressor confere ritmo ao trabalho, mas também em um laboratório, onde o artista experimenta e aprende a negociar com os elementos que agencia.
Desde a primeira revolução industrial temos tido a oportunidade de verificar que o projeto de mecanização dos mais variados processos esbarra em uma opacidade fundamental: o humano. A irregularidade a que o título da exposição alude advém deste polo da equação formulada pelo artista. É o humano, afinal, que restitui ao aerógrafo, correntemente empregado para obtenção de superfícies lisas e lustrosas, seu potencial de engendrar imagens cheias de mistério, diante das quais procuramos ajustar o foco do nosso olhar. É ao humano também, no tempo desembaraçado dos imperativos produtivistas, quando a atenção se distende e a consciência baixa a guarda, que devemos as imagens que vêm coabitar os planos aerados da pintura de Torggler. O acolhimento do acidente, do acaso e da indeterminação nas pinturas que agora se colocam diante do olhar do público é o que confere irregularidade ao serviço prestado pelo artista. Ainda bem.
Icaro Ferraz Vidal Jr.
¹CARROUGES, Michel. As máquinas celibatárias. Belo Horizonte: Relicário; São Paulo: n-1 edições, 2019.
²TORGGLER, Gabriel. Máquina falha. Disponível em: https://www.gabrieltorggler.com/home/textos/gabriel-torggler-m%C3%A1quina-falha