“Sono infinito” de Gabriel Torggler estabelece um diálogo da arte com a psicanálise, na experiência de um despertar de sentido que passa pela dimensão onírica. Das derivações do sono e do sonho, o artista, tendo o desenho como lastro, vasculha elementos diversos da sua cartografia inconsciente, ampliando as possibilidades de trabalho com novas operações e suportes e técnicas distintas.
Da pulsação vibrátil do desenho e fazendo uso de materiais diversos – papel, tela, MDF, metal, lona e granilite – com personagens, simbolos e grafismos do universo onírico e do cotidiano, Gabriel embaralha as dimensões de sonho e vigília. Com um conjunto de trabalhos produzidos no último ano, a exposição revela contornos do ato de sonhar que sustentam o aspecto enigmático das imagens espraiadas no espaço entre o despertar e o sono.
Os universos evocados por “Sono infinito” estabelecem uma operação sobre o campo do sentido que encontra eco na obra seminal de Freud – “A interpretação dos sonhos” – que inaugurou a psicanálise e apresentou a função do sonho como “guardião do sono”. Gabriel cria uma espécie de escrita por imagens lisérgicas e delirantes que fazem recordar da afirmação freudiana de que sonhamos também para acordar. Dentro desses mundos coexistem a dualidade do dia-noite, o dentro-fora, o dito e o não-dito e até mesmo o indizível.
Diferentes atmosferas conjugam essa dualidade, abrindo a possibilidade do diverso, delirante, plural e múltiplo. O inventário infinito e inacabado do artista é feito de um mergulho na pura vertigem, flertando com o absurdo e o fantástico em um belíssimo compêndio que desafia os limites da razão. Atraído pela estranheza, Gabriel revira a domesticidade das imagens e salta à outra margem, extraindo daí um saber possível, elaborando o que excede, realocando aspectos da cultura sob novos prismas, invocando uma abertura que se dá pelo sono e pelo sonho. E é nesse liame e nesse paradoxo que vivem suas figuras, personagens e grafismos. O que o artista cria a partir daí se prolifera nas margens e fronteiras da imagem e da língua. Da experiência do desenho, surge um firmamento atravessado pelo delírio e pela invenção, com seres híbridos, criaturas grotescas e referências de imagens ligadas ao cotidiano e à cultura pop.
Segundo Freud, o sonho seria a “via régia do inconsciente”, e Gabriel salta ao abismo das malhas do inconsciente como quem recolhe as ruínas de um mundo para reconstruí-lo, apontando para a afirmação lacaniana de que sonhamos inclusive acordados ou, mais ainda, de que só despertamos para continuar sonhando. O artista se mostra atento aos rastros dos sonhos como acontecimentos epifânicos que perturbam e recolocam questões importantes.
Em “The Waste Land”, T. S. Eliot lança a pergunta: ousarei eu perturbar o universo? O desafio de destacar esse sono infinito abre rasgos nos territórios que, antes, se apresentavam através de imagens absolutas, prescritivas, definitivas. Aqui, sonhar é escrever um nome próprio nos regulamentos anônimos, marcar diferença nas monocromias das prescrições, rasgar o guia para construir o seu próprio mapa, afirmar uma posição singular. O sonho subverte caminhos já exaustivamente indicados, abre brechas onde não há espaço para o inédito, para o fora de lugar, para o desvio, para a deriva.
A arte de sonhar comparece diante do deserto do real como um dispositivo de ficcionalização, exercício fabulatório que, buscando imagens ainda não disponíveis, pode refundar origens, inverter lógicas de funcionamento, recusar instruções, recuperar uma dimensão da incerteza e da imaginação. Artistas como Xul Solar – um dos grandes nomes das artes plásticas da Argentina – e Lenora Carrington – pintora inglesa surrealista, escritora e escultora, que viveu a maior parte da vida na Cidade do México – apresentaram em suas obras a relação com o místico, o fantástico e um mundo de seres e coisas absurdas, como uma tentativa de fuga às bordas da representação.
A força criativa e a potência do delírio na nascente encontram espaço em “Sono infinito”, com as múltiplas ficções e derivações de Gabriel. A dimensão do acontecimento surge, justamente, nas entranhas do inconsciente e, por isso, fascina, encanta e causa certa perplexidade. A força pulsional da sua obra reside nos traços e aparições de desenhos que condensam o cotidiano e algo sobrenatural e mágico. Da presença súbita do extraordinário abre-se uma relação com o estranho-familiar, o duplo que traz para a cena uma inquietante estranheza, uma dimensão fantasmagórica traduzida por Freud no texto “O estranho”, em que tateia esse caminho de uma sensibilidade não coagida pela razão, que pode acessar regiões envoltas em enigmas e paradoxos constitutivos.
Gabriel apresenta-se em uma multiplicidade pulsional. Entre variações cromáticas e muitas possibilidades expressivas e formais, ele sustenta um hibridismo de linguagens de fineza rara. As texturas diversas, nuances e filigranas de uma relação viva e complexa com o desenho acenam para um trajeto de onde emergem a liberdade da experimentação, uma maneira singular de irradiar e afirmar, a cada trabalho, o gesto primário de abertura ao espontâneo, a partir de um centro íntimo espesso, mas prenhe do que ainda está em vias de ser inventado.
É sonhar como quem sonha um poema de Wislawa Szymborska e, nesse momento em que o sonho roça o despertar, tocar o mistério com as mãos vazias: “Hora entre o dia e a noite. Hora em que a terra nos repudia. Hora em que o vento de estrelas extintas assobia. Hora vazia. Surda, vã.”
Bianca Coutinho Dias
2022